“Trataram-nos bem” em Lampedusa

“Trataram-nos bem” em Lampedusa

A história que acabamos de ouvir, neste texto dos Atos, poderia ser quase uma descrição perfeita das viagens pelo Mediterrâneo que empreendem desesperadamente tantos irmãos e irmãs que fogem de guerras e perseguições. Vamos repassar isso.

Na história temos um grupo de homens que, precisamente nestas águas entre a Grécia e Malta, durante a travessia, são apanhados por uma terrível tempestade e durante dias – a história diz duas semanas – permanecem à mercê do mar e do mau clima.

A bordo deste barco temos três grupos diferentes de homens: os soldados, os marinheiros e os prisioneiros. Entre os prisioneiros está também o apóstolo Paulo, que deve comparecer perante o imperador em Roma. Durante a viagem, dada a situação desesperadora que vivem há dias, surgem inúmeros momentos de tensão e conflito. Para se salvar, os marinheiros tentam escapar em botes salva-vidas e, posteriormente, os soldados querem matar os presos para evitar que eles escapem também.

Em suma, parece haver pânico e confusão, mas Paolo consegue várias vezes restaurar a esperança e manter o grupo unido. A única maneira de nos salvar, diz ele, é nos salvar todos juntos. E então, finalmente, o continente, a salvação, o local de desembarque. Todos eles chegam em terra, sãos e salvos. E aqui está o versículo da nossa semana: “Eles nos trataram com bondade.”

Os náufragos são imediatamente recebidos com muita gentileza, inesperada como lemos em outras traduções. Essa bondade desloca os homens que um momento antes enfrentavam a fúria, a violência, o medo, a desconfiança. A bondade, portanto, traz imediatamente os náufragos de volta à sua condição de humanos. Este é o momento da verdadeira chegada. “O local de desembarque traz consigo a esperança, pois o “proda” é um local fácil de atracar, consente a chegada e acolhe[1]”. A palavra bondade, portanto, também poderia ser substituída pela palavra humanidade[2]: “Trataram-nos com humanidade”.

E esta humanidade redescoberta e salva é imediatamente reunida em torno de uma fogueira. Aqui as pessoas param, sentam-se e formam um círculo. Nesta circularidade (que já havia acontecido uma vez durante a travessia no momento de partir o pão juntos) as hierarquias são superadas, não há mais soldados, marinheiros, prisioneiros, mas pessoas que se salvaram juntas. Nesta circularidade superam-se os desequilíbrios de poder e os conflitos, olha-se nos olhos e descobre-se no Outro a própria condição humana.

Desta hospitalidade inesperada, que com a sua força apaga a violência da viagem, na circularidade do reconhecimento do Outro, nasce tanta vitalidade. De fato Paulo, nos versículos seguintes, fará várias curas aos enfermos da ilha de Malta. Aqui a circularidade continua: conforme recebo, dou. E nessa história, primeiro você tem que passar pela tempestade, pelo conflito, depois você tem que saber receber, saber ser acolhido e, só então, você pode dar, retribuir. Foi Deus quem nos amou primeiro.

O que esta história nos diz hoje? Vamos voltar ao início.

Essa jornada assustadora e desesperada parece muito semelhante àquelas que fazem parte de nossa história hoje. Em vez de soldados, marinheiros e prisioneiros, temos milícias, traficantes de pessoas, a chamada guarda costeira líbia e pessoas que fogem em busca de uma vida diferente, em busca de uma esperança, em busca de uma chance. A travessia torna-se um pesadelo, a salvação parece inalcançável – “Durante vários dias não se via o sol nem as estrelas, e a tempestade tornava-se cada vez mais forte. Toda a esperança de nos salvar já estava perdida”, diz o texto.

A tempestade da história, com toda a sua violência e fúria, hoje, porém, não é um estado da atmosfera, uma expressão da força da natureza. A tempestade hoje é feita por portas fechadas – ou portos – por leis que a negam em vez de defender a vida. A tempestade hoje é um sistema que permite que as pessoas morram no mar, nos desertos, nos campos de concentração da Líbia. A violência da tempestade de hoje é mais sutil, porque imobiliza as pessoas nas fronteiras, deixando-as em estado de abandono e privação, que as transforma em “mortos-vivos”[3]em seres humanos ainda vivos, mas desprovidos de seu caráter humano a quem é negada a capacidade de agir.

O acto de desembarcar, ou de ser acompanhado por uma embarcação de uma ONG, não basta para salvar os náufragos de hoje, não basta para resistir àquela tempestade. Quantas vezes também esta ilha é um lugar de chegada, uma terra de salvação. Mas se criamos a tempestade com nossas leis, com nossas escolhas políticas e econômicas, precisaremos de muito mais do que um píer para pisar.

Precisamos saber lidar com a “bondade”, precisamos devolver a humanidade a toda uma parte do mundo que, ao contrário, desumanizamos para justificar nossa violência e nossa ganância. Você precisa saber sentar em círculo, quebrar as diferenças de poder e olhar o Outro nos olhos. Precisamos nos reconhecer no Outro e no Outro.

Por trás da violência de deixar morrer nossos irmãos e irmãs, está latente a ideia de que eles são um pouco menos humanos do que nós, um pouco menos pessoas, portanto tendo um pouco menos de direito de escolher para onde ir e que vida querem.

Mas como cristãos temos outro olhar, certo? Deus não foi feito homem por meio de Jesus Cristo? Não foi Deus quem primeiro quebrou essa hierarquia, essa distância? E Jesus, em sua corporeidade, não representa toda a humanidade, com igual dignidade e liberdade? O próprio Jesus nos ensina a ir ao encontro do Outro para nos reconhecermos. Fá-lo através de figuras marginalizadas, fá-lo através das mulheres, dos pobres, dos doentes. Jesus cruza continuamente as linhas entre puro/impuro, sagrado/profano, escravo/mestre, pobre/rico, vida/morte[4].

A história de Atos nos mostra o quanto estamos, todos juntos, literalmente no mesmo barco, tanto na tempestade quanto no local de desembarque. Todos na história temem por suas vidas, e quando você acredita que tudo está perdido, quando pensa que não há mais esperança, quando parece que não vê o horizonte, a única forma de superar essa crise é se juntar aos seus companheiros de viagem. E em Cristo somos todos viajantes juntos! Paulo nos diz que para nos salvarmos devemos permanecer juntos, como iguais, fortalecendo-nos e nos redescobrindo na humanidade do Outro.

Na introdução do SPUC deste ano lemos: “Esta história interpela-nos como cristãos que enfrentamos juntos a crise migratória: somos coniventes com forças indiferentes ou acolhemos com a humanidade, tornando-nos assim testemunhas do amor de Deus por cada pessoa? […] Nos caminhos tempestuosos e nos encontros fortuitos da vida, a vontade de Deus para a Igreja e para toda a humanidade atinge o seu cumprimento; como Paulo proclamará em Roma, a salvação de Deus é para todos (Atos 28:28).

E, portanto, irmãos e irmãs, ou somos livres e livres juntos (estamos seguros e seguros juntos) ou somos escravos e escravas juntos[5].

Amém.

[1] Vanessa Ambrosecchio (2020), tp24.it.

[2] Luca M. Negro (2020), nev.it.

[3] Mbembe A. (2003), necropolíticaem “Culturas Públicas”.

[4] Verde E. (2007), O Deus sem limitesClaudiana, Turim.

[5] Solnit R. (2017), Os homens me explicam as coisas. Reflexões sobre a opressão masculinaPonte delle Grazie, Milão.

admin

admin

Deixe o seu comentário! Os comentários não serão disponibilizados publicamente

Outros artigos

Prabook.  “Os Judeus na Itália” dia 9 de agosto, com Anna Foa e Edith Bruck

Prabook. “Os Judeus na Itália” dia 9 de agosto, com Anna Foa e Edith Bruck

Edith Bruck - foto omissam.it Roma (NEV), 7 de agosto de 2023 – A apresentação do livro de Anna Foa “Judeus na Itália. Os primeiros 2000 anos” (ed. Laterza). Com a participação de Edith Bruck em vídeo. Também com o autor Graziela Romano. Diálogo com Edith Bruck, a jornalista da agência NEV Elena Ribet. O evento faz parte das muitas atividades organizadas para esta 20ª edição especial do Festival "Pralibro". A revista cultural, nascida do encontro entre a Torre di Abele, a Libreria Claudiana e a Igreja Valdense, está de fato comemorando seus primeiros vinte anos. Como Daniela Grill e Susanna Ricci escrevem no Riforma.it, o Pralibro tem “milhares de livros vendidos e centenas de apresentações; um pequeno milagre cultural no município no fundo do vale Germanasca que oferece um programa de alto nível todos os verões”. Para saber mais: Rocco Pinto e Sara Platone, responsáveis ​​pela curadoria da revista, contam o que faz do Pralibro um ponto de encontro de leitores, autores e autoras. Vídeo de Claudio Petronella para a rádio RBE TV. [embed]https://www.youtube.com/watch?v=dGb00yrhTyY[/embed] ...

Ler artigo
religiões e meio ambiente na comunidade local

religiões e meio ambiente na comunidade local

Detalhe da capa do volume "O Deus dos migrantes. Pluralismo, conflito, integração" publicado por Il Mulino e editado por Maurizio Ambrosini, Paolo Naso e Claudio Paravati Roma (NEV), 11 de outubro de 2019 - A terceira edição do Festival "DÒSTI" abre hoje em Brescia, uma revisão de eventos culturais intitulada "O sopro da Terra: religiões e meio ambiente na comunidade local". Numerosos encontros em vários locais da cidade, entre os quais destacamos os de sábado, 12 de outubro, com participação protestante. Às 10h no Salone Vanvitelliano no Palazzo Loggia, é realizada a reunião pública com os representantes das religiões e cultos em Brescia "Ética ambiental e religiões", que contará com a presença de Anna Bossi E Cláudio Garrone do grupo “Gallo Verde”* da igreja valdense de Milão, juntamente com representantes das comunidades islâmica, católica, hindu, judaica, budista e ortodoxa. Às 18h, no Centro Multicultural Etnosocial de Artes (CARME), haverá a apresentação do livro “O Deus dos Migrantes. Pluralismo, conflito, integração” editado por Il Mulino e editado por Maurizio Ambrosini, Paulo Naso E Cláudio Paravati. O volume apresenta três pesquisas inéditas sobre os imãs das mesquitas italianas, sobre os ortodoxos romenos e sobre as diferentes faces do cristianismo entre os imigrantes milaneses. Paolo Naso falará, entre outros assuntos, sobre o tema das igrejas étnicas e dos espaços cívicos. Atendimento na sala Santi Filippo e Giacomo na via delle Battaglie 61. O festival inclui ainda debates com escolas, exposições, concertos, leituras animadas para crianças, e termina no domingo, dia 13 de outubro, com a exibição do filme “Ressurreição” (Bélgica, 2018, 110'), de Kristof Hoornaert, introduzido por uma discussão interdenominacional sobre "Fraternidade, redenção, terra". Seguir-se-á a entrega do Prémio Dòsti 2019 e provas interculturais. O evento acontecerá em vários locais da cidade. Todos os eventos têm entrada gratuita. Para informações: [email protected] * Nascido na Alemanha em 2001 com o intuito de gerar um sistema de gestão ambiental específico para realidades eclesiásticas, o projeto Gruner Gockel (em italiano exatamente “Gallo Verde“) tem visto a adesão de dezenas de igrejas, protestantes, católicas e ortodoxas, em vários países europeus. Na Itália, a igreja valdense de Milão foi a primeira a obter a certificação. ...

Ler artigo
Confissões religiosas, a FCEI reúne-se com o Subsecretário do Interior

Confissões religiosas, a FCEI reúne-se com o Subsecretário do Interior

Roma (NEV), 30 de março de 2021 – “As igrejas evangélicas continuam se destacando por sua capacidade de ter um forte impacto em nossa sociedade. A qualidade e profundidade de suas reflexões e o compromisso indiscutível que exercem na sociedade italiana fazem deles um importante protagonista de nossa vida nacional e um precioso interlocutor de grande autoridade para o Ministério do Interior”. Assim comentou o Subsecretário do Interior Ivan Scalfarotto no final da visita de ontem de manhã à Faculdade Valdense em Roma, como afirma esta nota no site do dicastério. Eles participaram da reunião Fabrício GalloDiretor Central de Assuntos Religiosos, Presidente da Federação das Igrejas Protestantes na Itália Daniele Garrone E Paulo Nasocoordenador da comissão de estudos da Federação das Igrejas Evangélicas da Itália (FCEI). Sobre a emergência ucraniana, o subsecretário destacou como a federação de igrejas evangélicas da Itália agiu imediatamente para preparar um plano de intervenção para ajudar a população ucraniana. “Também nesta ocasião não faltou às igrejas evangélicas a qualidade e intensidade de seu compromisso de proteger e garantir os direitos dos mais fracos e vulneráveis, o que é mais importante do que nunca em tempos de emergência”, concluiu Scalfarotto. O professor Garrone declarou: “Agradecemos ao Exmo. Scalfarotto pelo interesse demonstrado pelas igrejas evangélicas e pelo nosso compromisso social e humanitário. Esperamos que haja um reconhecimento cada vez maior do valor da liberdade religiosa e de consciência, com pleno respeito pelos indivíduos e comunidades, para uma sociedade cada vez mais aberta e inclusiva”. ...

Ler artigo

Otimizado por Lucas Ferraz.